Bisneto de escravos guarda relíquia
de atividade pesqueira da região

Benedicto mostra
apetrechos herdados de seus antepassados |
Ainda do período em que as
canoas eram quase o único meio de transporte de carga e pessoal,
ainda da época em que o artesão que confeccionava canoa era
considerado um mestre, não um bandido pelas leis ambientais, o
senhor Benedicto Antunes de Sá, 68 curtia as marés e os ventos,
bem como as atividades de pesca dos adultos.
Nascido na Cassandoca (com dois “s”), ele viveu e se criou num
lugar chamado São Lourenço, conhecido atualmente como Saco do
Morcego, onde ainda existem pilares e outros vestígios do
patrimônio da antiga fazenda.
Benedicto guarda por 54 anos um conjunto de pescaria que possui
um anzol, um arpão e uma fisga, só que não é um conjunto comum.
As peças têm cerca de 150 anos e foram forjados num aço
específico, até o arame é diferente. As peças foram de seu
bisavô Sinfronio Antunes de Sá, um dos escravos que deu início
ao quilombo da região, que deu a seu tio Thiago Barra Seca que
passou a seu Benedicto quando este tinha 12 anos. Seu avô, tanto
materno, quanto paterno tinha como primeiro nome o Antonio, um é
Madalena e outro Barra Seca de Oliveira, já seu pai foi Luiz
Antonio de Sá, todos sempre cuidaram do local que tinham o café,
a cana, a pesca como base da atividade de subsistência.
O tio que deu as peças faleceu aos 70 anos e até agora as peças
estão bem guardados na casa de seu Benedicto. “O arpão era mais
usado para pegar Salambiguara (peixe parecido a Guaivira),
também algumas tartarugas, a fisga era para pegar Carapeva,
Robalo na barra da Lagoa, às vezes em cima de canoa, o anzol era
para pegar Garoupa, Cação. Eu também pedi a meu tio a corda do
arpão, mas ele disse que a corda ia ficar em sua casa, mas todos
os apetrechos me deu”, explica seu Benedicto. Segundo ele o
peixe chegava a correr toda a extensão da corda, o pescador
ficava só com o chicote na mão. Diz ainda que nunca usou as
peças.
Benedicto é um daqueles caiçaras que quase ninguém dá bola,
parece um homem comum em meio aos outros, mas quem o conhece
sabe que ele também tem história para contar, o carinho que as
pessoas têm por ele o denúncia como homem de bem, sua história
começa por sua árvore genealógica, a dos primeiros homens e
mulheres que deram início ao quilombo Caçandoca (com “ç”).
Em sua época, os peixes eram em maior quantidade, já que os
homens conciliavam mais suas atividades com o respeito aos
ciclos naturais, não havia barulho na água e nem barcos com
redes enormes que varrem o fundo mar. Benedicto lembra de uma
ocasião que seu pai saiu para pescar com o Gregório no Saco das
Bananas, no Largo, quando os dois sentiram um tranco, era uma
“Tintureira” (espécie de cação), ao chegar à praia, por
orientação de um pescador mais experiente, viraram a canoa e
embaixo da canoa havia dois dentes cravados na madeira, todos se
assustaram.
Existem na região outras histórias ocorridas com esta espécie de
cação, uma das mais violentas espécies de nosso litoral. “Meu
avô foi um dos maiores pescadores da Lagoa”, comenta orgulhoso
seu Benedicto. Lembra ainda de outra passagem de seu avô, ele
percebeu uma “Tintureira” chiando embaixo de sua canoa, o avô
continuou remando bem devagar até sair do campo de ataque do
peixe. Vale lembrar que esta espécie pode atacar o pescador,
mesmo em cima de sua canoa, comenta o pescador. Benedicto não
sabe se outros pescadores têm peças como estas, mas fala que o
valor sentimental é muito maior do que o valor histórico e
material.
Seu Benedicto veio para o Sertão da Quina em 1987, a dificuldade
para os filhos estudarem, a falta de energia elétrica e posto de
saúde foram uns dos fatores para a mudança de lugar. Atualmente
vive no entorno de sua família e guarda com muito carinho as
peças que foram de seus antepassados, ele ainda desmistifica
gratuitamente o tempo para turistas, veranistas e até mesmo
moradores que querem saber um pouco mais deste lindo litoral.
Ezequiel dos
Santos